A sinfonia derradeira

Por Pedro Krüger

Se partidas de futebol fossem música, certamente a final da Copa do Mundo de 2022, no Catar, seria a sinfonia derradeira. O que se (ou)viu em campo na tarde do dia 18 de dezembro foi uma das mais belas melodias futebolísticas de todos os tempos, algo extraordinário, épico, do tipo que não ecoava em mundiais desde a final de 1970, ocasião da terceira coroação do Rei Pelé. Os responsáveis por executar esse esplendoroso concerto? Uma orquestra multiétnica composta por argentinos e franceses sob a regência do maestro Lionel Messi.

O espetáculo, que teve como palco o estádio Lusail, em Lusail, teve início às 18 horas no horário catari, o equivalente ao meio-dia no Brasil. A expectativa era de que os franceses entrassem em campo sob uma melodia tranquila, confortável, posto que defendiam o título de campeões mundiais, tendo eliminado a própria Argentina na edição anterior. Sob os argentinos, em especial Messi, caia a forte pressão pela conquista de um título que não vinha desde 1986 pelas mãos de Diego Armando Maradona. Por isso, era esperada uma atuação nervosa, pressionada. Porém, a realidade se apresentou radicalmente diferente das expectativas, e o que se observou na etapa inicial do show foi a exibição de uma orquestra só, os artistas argentinos, conduzidos por Lionel Messi, passearam em campo sem tomar nenhum conhecimento dos franceses, destilando seu tango para os mais de 88 mil espectadores presentes na decisão.

O primeiro gol saiu ainda aos 22 minutos: em infiltração pelo lado esquerdo da área, Ángel Di María deixa seu marcador, Ousmane Dembélé, para trás, e vem conduzindo a bola em direção à meta. O francês, que vê o argentino penetrando a área na iminência de desferir um acorde fatal, tenta o bote para recuperar a posse. Di María cai dentro da área, pênalti. Então, Leo Messi, carregando todo peso de um país nas costas, ajeita calmamente a pelota na marca da cal, para, com a frieza e elegância próprias de um maestro, deslocar o goleiro Lloris e premiar a nação argentina com o som do farfalhar das redes em uma final de copa do mundo pela primeira vez depois de 36 anos. A segunda não demorou tanto assim. Agora, apenas 13 minutos depois, puxando um contra-ataque, Leo, de costas, aciona Julián Álvarez partindo para o campo ofensivo em velocidade. O garoto toca no meio campista Mac Allister, que, por sua vez, encontra Di María livre dentro da área. Com um toque angelical de cobertura com a perna esquerda, Ángel desfere mais uma acorde que eleva os hermanos aos céus, 2 para a Argentina, 0 para a França. E assim se encerra o primeiro ato.

O segundo ato começa com os franceses ainda atordoados pela potência sonora do tango apresentado pelos argentinos, de maneira que o espetáculo retorna sereno, calmo, com os sul americanos apenas administrando a vantagem construída. Contudo, aos 79 minutos, Kolo Muani rouba a bola no campo de ataque, parte correndo em direção à meta de Dibu Martínez e é derrubado por Otamendi. Pênalti para a França. Kyllian Mbappé chama a responsabilidade, ajeita a bola no centro da grande área e lança uma bomba à esquerda do goleiro, que, em vão, pula para no canto certo com os braços esticados a fim de impedir o gol. Repetindo, em vão. A França diminui.

Dois minutos mais tarde, a calmaria se transforma de vez em tempestade: Marcos Thuram, filho do lendário lateral direito Lillian Thuram, lança por cima da defesa uma bola para Mbappé, que impiedosamente arremata de primeira no canto direito sem chances para Dibu e iguala o placar, 2 x 2. O ritmo que havia pouco se consolidava fleumático e sereno, converte-se agora em um tango sanguíneo e dramático, como é característico dos argentinos. Fim do segundo ato, haverá terceiro.

O terceiro ato, a prorrogação, dá continuidade à loucura que fora o final da etapa anterior. Com o espetáculo absolutamente em aberto, ambas equipes dançavam sob frenética melodia quando, aos 108 minutos, Lautaro Martínez, que entrara para substituir o garoto Julián Álvarez, recebe um passe dentro da área através de uma brecha na trincheira francesa e bombardeia a meta de Lloris. Com reflexos de águia, o goleiro defende, mas a bola sobra para Lionel Messi, livre, escorar de pé direito rumo ao gol desprotegido. 3 x 2, os argentinos explodem em êxtase. Entretanto, é evidente que a peça não terminaria assim, o drama ainda não atingira seu ápice, ainda havia espaço para mais, então, 10 minutos depois, em despretensiosa finalização de longe, a bola de Mbappé encontra o braço aberto de Gonzalo Montiel dentro da área, mais um pênalti para a França. O camisa 10 outra vez chama a responsabilidade, desloca o goleiro e crava com nova bomba no canto esquerdo. Tudo igual, 3×3, os penais parecem inevitáveis, apenas mais 3 minutos de acréscimos e fim de jogo. Será mesmo? Não, aos 2 minutos e 23 segundos, em falha grotesca da defesa argentina, uma bola alta sobrou nos pés de Kolo Muani, que, sem marcação, se encontrava em condições ideais para finalizar. Parecia inevitável o quarto gol da França. Bom, se isso era o que parecia, faltou combinar com Dibu Martínez, pois o goleiro argentino operou um verdadeiro milagre e impediu que tal coisa acontecesse. No contra-ataque, ainda, em jogada puxada por Messi, Lautaro recebe uma bola alta redonda para o cabeceio, mas arremata para fora, desperdiçando a oportunidade. Agora, sim, fim da prorrogação. Tudo igual, 3×3, o drama atinge enfim seu ápice: chegou-se ao último ato, haverá decisão por penais.

A melodia derradeira do ato derradeiro começa a ser tecida a partir dos pés de Kyllian Mbappe. O garoto, com 23 anos, demonstra a mesma frieza com a qual empurrara a pelota para o fundo da rede nas outras três oportunidades; mais uma vez manda um chute explosivo no canto esquerdo sem chances para Dibu. 1×0 França. Em seguida é a vez de Messi. O craque, aos 35 anos, disputando provavelmente sua última edição de copa do mundo, encontra na cobrança o momento mais tenso e decisivo de sua carreira. Isso em teoria, pois na prática o que se viu foi uma cobrança até desdenhosa do maestro, que conduziu o goleiro para um canto e despachou a bola no outro. 1 x 1. O próximo da fila é Coman, que bate mal, cruzado à meia altura, no canto esquerdo, de encontro ao corpo de Dibu Martínez estirado no ar. Dybala não desperdiça a oportunidade, bate no meio do gol e amplia para a Argentina, 2 x 1. Depois foi a vez do garoto Tchouaméni, que sucumbiu ao nervosismo diante das provocações dançantes de Dibu Martínez e chuta para fora. Paredes não comete o mesmo erro e amplia para los hermanos, 3×1. Kolo Muani diminui, 3×2, de modo que a cobrança final fica à cargo de Gonzalo Montiel, ele mesmo, o responsável pela marcação do pênalti que resultou no empate francês. O argentino não titubeia, goleiro de um lado e bola do outro: fim do espetáculo, apita o árbitro, Argentina 4, França 2.

Os artistas regidos por Messi difundem seu tango sanguíneo, dramático e teatral não só para as mais de 88 mil pessoas presentes no estádio Lusail, mas, sim, para o mundo todo. O mundo se torna argentino. Lionel Messi se converte em Deus, à imagem e semelhança de Don Diego, para os argentinos. A final da copa de 1970, o esplendoroso 4 x 1 do Brasil de Pelé, Tostão, Rivellino e cia sobre a Itália, foi superada. O ápice daquilo que o futebol pode entregar na forma de música, de arte em seu estado mais puro, foi apresentado. A orquestra multiétnica composta de argentinos e franceses, sob a regência do maestro Lionel Messi, produziu, enfim, a sinfonia derradeira.

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