Por Thuanne Santos
Uma foto em preto e branco passa pelo meu feed. Meu coração acelera e volto para averiguar a informação. Era apenas a despedida de um apresentador de seu famoso programa. Desde quando a falta de cores nas fotos significam morte para mim, eu não sei responder.
Eram quase 21h30 do dia 29 de março de 2021. As notícias no telejornal passam pelos mesmos temas. Mudanças de última hora na política, ministro demitido e cargos remanejados, tomam espaço no noticiário. Uma nova estratégia se evidenciava.
Declarações de um ex -ministro da justiça são destaque na escalada. Julgamento de policiais americanos e investigação sobre a morte de uma criança também entram na edição.
Alguns moderados minutos, como de costume, são reservados aos números sobre contágio, vacinação e morte por Covid 19. Nada mais que cinco minutos bastam para inteirar o telespectador. O telejornal chega ao fim com a notícia que todos esperavam: as notas do Enem estavam liberadas.
Ao mesmo tempo em que eu assistia ao jornal, em uma sala de UTI lotada, em sono profundo, os ocupantes escutavam os bipes dos companheiros de quarto. Em harmonia, indicavam um filete de vida. Alguns dizem que mesmo sob efeito de remédios os sons podem ser ouvidos mas, naquela hora, dois de sete bipes se desligaram por completo.
Paralelamente, um celular toca recebendo a notícia que mais de 3.500 famílias receberam naquele dia. Débora perdia mais um familiar. Uma semana antes, os aparelhos ligados a seu irmão foram retirados e agora, seu sobrinho sucumbia, naquela sala, pelo mesmo motivo. Sufocada pela dor de não poder enterrar os seus, a mulher assistia sem parar a vídeos antigos dos parentes. Eles cantavam e sorriam para a câmera, enquanto diziam: “Essa é para Débora!”.
Com peito aberto e cheio de fôlego entoavam cânticos congregacionais. “Não haverá mais noite ali, não haverá nenhum clamor! Verei os olhos de Jesus e tocarei seu corpo enfim”. As lágrimas corriam em demasia enquanto a senhora voltava a assistir, mais uma vez, aqueles vídeos. As mortes por covid, no dia 29 de março de 2021, alcançaram seu pico. Mas naquela edição do jornal mais famoso do Brasil, nenhuma homenagem foi rendida.
Nenhuma foto em preto e branco foi exibida como em tantas outras edições eram ostensivamente passadas. Nenhum número era alguém. Eram números, longe de quaisquer humanidade que poderiam ter. Nas redes sociais, uma avalanche de retratos em preto e branco indicavam as mortes. Milhares de centenas rolaram o feed no último adeus desesperado.
O expressivo preto e branco conhecido como artifício de estado de espírito, nesses meses era usado como um apagar das luzes. Enquanto abraçava aquela senhora e voltava a ver o mesmo vídeo, descobri que minha impressão não era a toa. Vivi meses enxergando a morte em preto e branco. Elas estavam nos últimos segundos de algum jornal e nas despedidas de conhecidos. Estavam nas páginas de fofocas e no entretenimento bobo.
Eram a representação do esvair da vida. Não havia expressividade maior que retirar as cores daqueles que já se foram. Segurando uma das mãos daquela senhora, compreendi sua dor. Em sua memória, as imagens vivas jamais perderão o vigor da vida e das cores. A vida continua em nosso peito assim como a música continuava a entoar.
“Não haverá mais noite ali, não haverá nenhum clamor”